– PEDRO LUSO DE CARVALHO
ROBERTO GOMES, acaba de lançar mais um livro de contos, A Guitarra de Jemi Hendrix, pela Criar
Edições. Para os leitores que conhecem Roberto Gomes não haverá surpresa quanto
a excelência de sua escrita ficcional. Mas, para os seus novos leitores, não
será demasia dizer que ele é um dos escritores brasileiros contemporâneos mais
importantes – daí minha indicação para que não deixem de ler o livro A Guitarra de Jemi Hendrix, que é
composto por quinze excelentes contos.
Mesmo voltado para a literatura – conto, novela, romance, bem como pela
ficção infantil, com a qual foi distinguido com o Prêmio Jabuti – Roberto Gomes não se
afastou da Filosofia, depois que se graduou, na Universidade Federal do Paraná,
há algumas décadas. Na Universidade, não se limitou a exercer a docência, também levou seus
conhecimentos filosóficos para o livro, como é exemplo Crítica da Razão Tupiniquim, que há algumas décadas vem sendo
adotado por muitas escolas do nosso país, e com edições renovadas.
Como nosso propósito nesta postagem é dar conhecimento aos leitores do
lançamento do novo livro de contos de Roberto Gomes, vamos transcrever abaixo o
conto O terno branco, do livro A Guitarra de Jemi Hendrix:
O terno branco
Roberto Gomes
Ele já não tinha nome.
Era conhecido pelos apelidos, que eram muitos,
dependendo de onde estivesse, dos amigos a sua volta, se era madrugada e estava
numa boate, se anoitecia e estava num boteco. Só não tinha um apelido para as
manhãs, quando passava dormindo, roncando demasiado alto para seu corpo pequeno,
produzindo um estardalhaço sonoro que parecia capaz de quebrar vidraças.
Acordava pontualmente às duas da tarde, a boca
queimando, os olhos vermelhos, que dizia infestados por espinhos, não tem
mesmo um espinho neste olho?, perguntava, abrindo as pálpebras com dois
dedos em alicate. Saía da cama gemendo, ia ao banheiro, enfiava a cabeça
debaixo da torneira e, num mesmo gesto, esticava a mão para apanhar a garrafa
de conhaque que deixava no armário ao lado. Bebia no gargalo e estalava os
beiços.
Sempre vestido de preto.
Uma calça e duas camisas pretas e puídas, que
fediam a mil noites e muitas mulheres da vida. Só permitia que fossem lavadas
às segundas-feiras, quando não acordava às duas horas da tarde e seguia
roncando pelo resto do dia. Saía da cama quando já era noite. Pedia um café
embora soubesse que ninguém o atenderia e, cruzando o corredor rumo à cozinha,
declarava:
- Segunda-feira é mesmo um dia que não presta pra
nada.
Tomava café frio, olhava com desinteresse para a
televisão, diante da qual a mulher e a filha estavam plantadas como duas
samambaias. Ia ao banheiro com algum estrondo, empestando os ares da casa,
batia portas, deixava cair os sapatos quando tentava calçá-los, atrapalhava-se
com a camisa do pijama, que enroscava nos braços. Depois desta encenação que
repetia com uma precisão de relógio, dizia puta que o pariu que ninguém fala
comigo nesta casa! e, parado no meio da sala, decretava, com ênfase:
- Segunda-feira é mesmo um dia que não presta pra
nada!
E voltava para a cama, onde se punha a fazer
cálculos na tentativa de descobrir há quantos anos ninguém o ouvia, há quantos
séculos não tinha notícias da filha, que estava lá plantada no sofá, como
era mesmo o nome da desinfeliz?, há quanto tempo não conversava com o
filho, que cuspia para o lado quando cruzava com ele? E a mulher, quem
era ela?
Depois, dormia aos solavancos até mergulhar num
sonho onde havia uma mulher que lhe dizia: vem. Ele ia, sentava-se à
mesa, contava casos, anedotas, pregava apelidos em quem estivesse por perto e
fazia com que todos rissem muito e batessem nas suas costas dizendo que era
mesmo um sujeito admirável, uma figura. Acordava na terça-feira, às duas horas
da tarde, pontualmente. E recomeçava.
No mais, terminava certas noites emborcado numa
calçada, acordava com dois policiais cutucando suas costelas com o coturno.
Noutras, abria os olhos numa casa desconhecida, no meio da madrugada, diante de
uma cortina de plástico que era um escandaloso campo coberto com flores
vermelhas e amarelas. Ou era erguido por dois braços fortes e jogado na rua,
onde quebrava um dente contra o meio-fio. Ia até a farmácia, passava mercúrio
cromo na boca, nos braços, na testa, pregava alguns esparadrapos pelo corpo e
entrava no primeiro boteco.
Foi assim até o dia em que chegou em casa num
domingo à tarde, provocando alvoroço na vizinhança, o que ele fazia em casa
àquela hora?, o que estava acontecendo? Atravessou a curiosidade
daquela gente cretina sem se deixar abalar e entrou em casa com um pacote muito
jeitoso debaixo do braço. Cumprimentou a todos, não recebeu resposta alguma, a
filha na frente da televisão, a mulher fabricando os biscoitos com os quais
sustentava a casa, o filho cuspindo para os lados como se fosse um preto velho
de macumba.
Entrou no quarto e, como sempre, deixou a porta
aberta. Todos viram quando abriu o pacote com cuidado e dele retirou um terno
branco, claríssimo, e uma camisa também branca. Viram quando estendeu o terno
sobre a cama e dependurou a camisa num prego ao lado do armário. Despiu-se,
jogando no chão o terno preto e a camisa preta, e estava nu, pois não usava
cuecas, uma de suas implicâncias. Viram sua exibição inocente de carnes
flácidas, a bunda murcha, o sexo desatento entre as pernas.
Então ele vestiu a camisa branca, as calças
brancas, o paletó branco. Olhou-se no espelho balançando a cabeça e, quando se
virou para a porta, a mulher, a filha e o filho fizeram de conta que não
estavam olhando e mergulharam de novo na tela da televisão. Ele veio até a
sala, perguntou se ninguém ia lhe oferecer um café. Não teve resposta. Foi à
cozinha e tomou um copo de água, derrubou uma caneca e, quando retornava ao
quarto, disse:
- Amanhã é segunda-feira e segunda-feira não
serve mesmo pra nada.
Quando entrou no quarto, os três observaram o
modo cerimonioso como ajeitou o terno branco no corpo, acomodou os punhos da
camisa, aprumou o colarinho, alisou os lençóis, afofou o travesseiro e se
deitou na cama. Ficou muito reto, parecendo maior do que era, as mãos sobre o
peito, os sapatos apontando para o teto, o nariz muito fino interrogando contra
a janela ao fundo.
Logo estava roncando aos arrancos. O filho fechou
a porta do quarto, a filha aumentou o volume da televisão. Estranharam quando
ele não acordou ao anoitecer da segunda-feira, pedindo café e reclamando que
segunda-feira não serve mesmo pra nada. Só às duas horas da tarde de
terça-feira abriram a porta do quarto.
- Acho que não roncava desde as dez horas de
ontem, a filha explicou ao médico que foi chamado às pressas.
*
[Para
adquirir o livro de Roberto Gomes,
clicar em A Guitarra de Jemi Hendrix.]
* * *
Boa noite, Pedro, Roberto Gomes, pode se considerar homenageado por seu blog,pois você nos deu a notícia do lançamento de mais uma obra que vem enriquecer a nossa Literatura.O conto muito criativo, nos deixa com o gostinho de quero mais.Parabéns, Pedro pela iniciativa em nos dar de presente tão rica postagem. Grande abraço!
ResponderExcluirObrigado Marli.
ExcluirA opinião sobre o conto "O terno branco", de Roberto Gomes, tem o peso positivo de quem é professora de Literatura, com Mestrado e Doutorado conquistados na mesma Universidade em que ele lecionou. O escritor certamente ficará contente quando ler este seu comentário.
Um grande abraço.
Esplêndido texto!
ResponderExcluirParabéns pelo excelente conteúdo que o seu Blogue nos transmite...
Beijinho
Bom início de semana amigo Pedro Luso
Maria
Agradeço, Maria, em nome do Roberto Gomes.
ExcluirDesejo também a você uma boa semana.
Um abraço.