23 de abr. de 2024

AUGUSTO DOS ANJOS – Poeta Singular



      – Pedro Luso de Carvalho

AUGUSTO DOS ANJOS nasceu no Engenho de Pau D’Arco, junto à vila Espírito Santo, Estado da Paraíba, no dia 20 de abril de 1884. Aprendeu as primeiras letras com seu pai, advogado estudioso e dono de uma excelente biblioteca, na qual se encontravam obras de Darwin, Spencer e outros teóricos evolucionistas.
Cursou o secundário no Liceu Paraibano e Direito em Recife. Essa graduação, no entanto, não lhe serviu como profissão, já que nunca exerceu a advocacia, por não ser essa sua vocação, mas, sim, o magistério. Lecionou literatura no Liceu Pernambucano, e, depois, já no Rio de Janeiro, foi professor de Geografia na Escola Normal e no Colégio Pedro II. Daí mudou-se para Leopoldina, no Estado de Minas Gerais, onde foi diretor de um grupo escolar.
Diz-se que Augusto dos Anjos compôs os seus primeiros versos aos sete anos de idade. Mas o certo é que, mais tarde, a crítica chegaria a reconhecer ser ele o mais original dos poetas brasileiros, e de que poucos haverá, como ele, tão originais na língua portuguesa. É bem verdade que, em vida, o poeta não pode sentir esse valor atribuído à sua poesia; esse reconhecimento só viria ocorrer anos mais tarde.
Exemplo de que o reconhecimento da excepcional obra poética de Augusto dos Anjos parecia ter tido pouco significado na época em que fez, às suas expensas e com a ajuda de seu irmão, a publicação de seu livro “Eu”, é contada por Francisco de Assis Barbosa, um dos mais importantes biógrafos do poeta:
Dias depois de sua morte, ocorrida em Leopoldina, Órris Soares e Heitor Lima caminhavam pela Avenida Central e pararam na porta da Casa Lopes Fernandes para cumprimentar Olavo Bilac. O príncipe dos poetas notou a tristeza dos dois amigos, que acabaram de receber a notícia. – E quem é esse Augusto dos Anjos – perguntou. Diante do espanto de seus interlocutores, Bilac insistiu: Grande poeta? Não o conheço. Nunca ouvi falar nesse nome. Sabem alguma coisa dele? Heitor Lima recitou o soneto Versos a um coveiro. Bilac ouviu pacientemente, sem interrompê-lo. E, depois que o amigo terminou o último verso, sentenciou com um sorriso de superioridade: - Era esse o poeta? Ah!, então, fez bem em morrer. Não se perdeu grande coisa.
A afirmação feita por Ivan Cavalcanti Proença, sobre Augusto dos Anjos, contraria o que disse dele Olavo Bilac: “Hoje, é um dos três mais lidos, e conhecidos poetas de antes do Modernismo, em língua portuguesa no Brasil, ao lado do nosso Castro Alves e da lírica Marília de Dirceu de Tomás Antonio Gonzaga”.
Diz Alfredo Bosi, no seu livro A Literatura Brasileira. O Pré-Modernismo, publicado em em 1966: “Augusto dos Anjos foi homem de um só livro: ‘Eu’, publicado em 1912, e cuja fortuna, extraordinária para uma obra poética, atestam as trinta edições vindas à luz até o momento em que escrevemos (1966)”.
Ivan Cavalcanti Proença enumera outras edições de Eu, de Augustos dos Anjos: a 29ª em 1963, pela Livraria São José, a 30ª (1965) e a 31ª (1971). Esta contou com o estudo de Antonio Houaiss e nota biográfica de Francisco de Assis Barbosa, com “Poemas Esquecidos” (Agrupados por De Castro e Silva em estudos de 1914 e 1954).
Acrescenta Proença, que, pela Editora Paz e Terra, saem duas edições: a de 1978, Toda a Poesia, com estudo de Ferreira Gullar e apresentação de Otto Maria Carpeaux (edição que reproduz a 31ª da São José). Em 1987 a Editora Civilização Brasileira lançou o livro Eu e Outras Poesias, com texto e notas de Antonio Houaiss, o Elogio... de Órris Soares, o estudo biográfico de Francisco de Assis Barbosa. Além dessas edições, saíram as edições da Martins Fontes, em 1994,  da Paz e Terra e Nova Aguilar, ambas em 1995.
O professor Sergius Gonzaga assim se manifesta sobre o poeta, em sua obra Curso de Literatura Brasileira:
Augusto dos Anjos é um caso a parte na poesia brasileira. Autor de grande sucesso popular foi ignorado por certa parcela da crítica, que o julgava mórbido e vulgar. Alguns estudiosos que se debruçaram sobre essa obra única e absolutamente original perderam tempo discutindo se a mesma era parnasiana ou simbolista. O domínio técnico e o gosto pelo soneto comprovariam o primeiro rótulo. A fascinação pela morte, a angústia cósmica e o emprego de ousadas metáforas, indicariam a tendência simbolista.
Esse debate tornou-se obsoleto perante estudos mais apurados, como o de Ferreira Gullar, que acentua a modernidade dos versos de “Eu”. Diz Gullar: “Talvez nenhum outro autor do período merecesse tanto a denominação de pré-modernista como Augusto dos Anjos. Pré-modernista ele o é na mistura de estilos, na linguagem corrosiva, no coloquialismo e na incorporação à literatura de todas às sujeiras da vida”.
Durante muito tempo, discutiu-se se ele era ou não um grande poeta. Hoje, os estudiosos sublinham sua singularidade temática e linguística, mesmo reconhecendo eventuais deslizes. Alguns, contudo, lembram a morbidez e a vulgaridade desenfreada de várias composições. Pode-se gostar ou não de sua obra, mas sonetos como Versos Íntimos estão de tal forma entranhada na memória do leitor brasileiro que não mais podem ser ignorados. Tornaram-se clássicos.
O poema que Augusto dos Anjos dedica ao seu pai falecido revela o seu sentimento de angústia diante da morte, uma perspectiva sempre presente, desde que soube da doença que o acometia, a tuberculose, e que, mais tarde, viria tirar-lhe a vida:

Podre meu pai! A Morte o olhar lhe vidra.
Em seus lábios que os meus lábios osculam
Microorganismos fúnebres pululam
Numa fermentação gorda de cidra.

Duras leis as que os homens e a hórrida hidra
A uma só lei biológica vinculam
E a marcha das moléculas regulam,
Com a invariabilidade da clepsidra!

Podre meu pai! E a mão que enchi de beijos
Roída toda de bichos, como os queijos
Sobre a mesa de orgíacos festins!...

Amo meu pai na atômica desordem
Entre as bocas necrófagas que o mordem
E a terra infecta que lhe cobre os rins!

Augusto dos Anjos (Augusto Carvalho Rodrigues dos Anjos) era um dos quatro filhos de Alexandre Rodrigues dos Anjos e de Córdula Carvalho Rodrigues dos Anjos. Em 1910, antes de mudar-se para o Rio de Janeiro, casou-se, aos 23 anos, com Ester Fialho, com quem teve dois filhos: Glória (1912) e Guilherme (1913). Faleceu aos 12 de de novembro de 1914, em Leopoldina – para onde se mudara para tratar da tuberculose – vítima de congestão pulmonar.


REFERÊNCIAS:

GONZAGA, Sergius. Curso de Literatura Brasileira. Porto Alegre: editora Leitura XXI, 2004.
LINS, Álvaro. BUARQUE de Hollanda, Aurélio. Roteiro Literário de Portugal e do Brasil. Rio de Janeiro: Antologia da Língua Portuguesa, Ed. Civilização Brasileira, 1966.
BOSI, Alfredo. A Literatura Brasileira. O Pré-Modernismo. São Paulo: Editora Cultrix, 1966.
PROENÇA, Ivan Cavalcanti. Estudos e Notas. Antologia Poética de Augusto dos Anjos. Rio de Janeiro: Editora Ediouro, 1997.

  

  *  *  *

12 de abr. de 2024

[Poesia] EDGAR ALLAN POE / O Corvo


         
          por Pedro Luso de Carvalho



        Escrevi, neste espaço, artigo sobre Edgar Allan Poe e sua Antologia de Contos, e fiz menção à sua poesia, em especial ao seu comovente e imortal poema O Corvo, que Poe escreveu -o inspirado em Vírgínia Clemm, sua prima-irmã, com quem se casou quando ela tinha apenas treze anos de idade; Virgínia faleceu de tuberculose, em conseqüência da pobreza em que vivia o casal.


        No ano de 1847, Poe teve algumas de suas histórias traduzidas para o francês por Charles Baudelaire, que, num trecho do prefácio que fez para a publicação da obra, disse: “Quanto a sua mulher ideal, a sua Titânide, revela-se em diferentes retratos, esparsos nas suas poesias pouco numerosas, retratos, ou antes maneiras de sentir a beleza, que o temperamento do autor aproxima e confunde numa unidade vaga mas sensível, e esse amor insaciável do Belo, que é seu grande título, isto é, a soma de seus títulos à afeição e ao respeito dos poetas”.


        Mallarmé, um dos expoentes do Simbolismo, continuou a fazer a divulgação das histórias e poesias de Poe, que se viu consagrado nos dois anos que antecederam sua morte. Essa consagração deveu-se não apenas ao conto, mas também a sua poesia, cujos versos falam apenas de mundos interiores, sem qualquer menção ao mundo exterior.


        Quanto ao seu imortal poema O Corvo, este só ficou acabado depois de ter sido modificado ao longo de dez anos; Poe era dotado de extraordinária imaginação, qualidade que se somava a outra, qual seja, a de ter sido intransigente no tocante à qualidade literária de sua obra; daí ter despertado o interesse na sua tradução do inglês para muitos idiomas – para o português, o poema também foi traduzido por Machado de Assis e Fernando Pessoa. Passemos ao poema:




                     O C O R V O



Foi uma vez: eu refletia, à meia-noite erma e sombria,
a ler doutrinas de outro tempo em curiosíssimos manuais,
e, exausto, quase adormecido, ouvi de súbito um ruído,
tal qual houvesse alguém batido à minha porta, devagar.
“É alguém”, fiquei a murmurar, “que bate à porta, devagar;
sim, é só isso e nada mais”.


Ah! claramente eu o relembro! Era no gélido dezembro
e o fogo, agônico, animava o chão de sombras fantasmais.
Ansiava ver a noite finda, em vão a ler, buscava ainda
algum remédio à amarga, infinda, atroz saudade de Lenora
- essa, mais bela do que a aurora, a quem nos céus chamam Lenora
e nome aqui já não tem mais.


A seda rubra da cortina arfava em lúgubre surdina,
arrepiando-me e evocando ignotos medos sepulcrais.
De susto, de pávida arritmia, o coração veloz batia
e a sossegá-lo eu repetia: “É um visitante e pede abrigo.
Chegando tarde, algum amigo está a bater e pede abrigo.
É apenas isso e nada mais”.


Ergui-me após e, calmo enfim, sem hesitar, falei assim:
“Perdoai, senhora, ou meu senhor, se há muito aí fora me esperais;
mas é que estava adormecido e foi tão débil o batido,
que eu mal podia ter ouvido alguém chamar à minha porta,
assim de leve, em hora morta”. Escancarei então a porta:
escuridão, e nada mais.


Sondei a noite erma e tranquila, olhei-a fundo, a perquiri-la,
sonhando sonhos que ninguém, ninguém ousou sonhar iguais.
Estarrecido de ânsia e medo, ante o negror imoto e quedo,
só um nome ouvi (quase em segredo eu o dizia) e foi: “Lenora!”
E o eco, em voz evocadora, o repetiu também: “Lenora!”
Depois, silêncio e nada mais.


Com a alma em febre, eu novamente entrei no quarto e, de repente,
mais forte o ruído recomeça e repercute nos vitrais.
“É na janela”, penso então. “Por que agitar-me de aflição?
Conserva a calma, coração! É na janela, onde, agourento,
o vento sopra. É só do vento esse rumor surdo e agourento.
É o vento só e nada mais”.


Abro a janela e eis que, em tumulto, a esvoaçar, penetra um vulto:
- é um Corvo hierático e soberbo, egresso de eras ancestrais.
Como um fidalgo passa, augusto, e, sem notar sequer meu susto,
adeja e pousa sobre o busto – uma escultura de Minerva,
bem sobre a porta; e se conserva ali, no busto de Minerva,
empoleirado e nada mais.


Ao ver da ave austera a soleníssima figura,
desperta em mim um leve riso, a distrair-me de meus ais.
“Sem crista embora, ó Corvo antigo e singular” – então lhe digo –
“não tens pavor. Fala comigo, alma da noite, espectro torvo,
qual é teu nome, ó nobre Corvo, o nome teu no inferno torvo!”
E o Corvo disse: “Nunca mais”.


Maravilhou-me que falasse uma ave rude dessa classe,
misteriosa esfinge negra, a retorquir-me em termos tais;
pois nunca soube de vivente algum, outrora ou no presente,
que igual surpresa experimente: a de encontrar, em sua porta,
uma ave (ou fera, pouco importa), empoleirada em sua porta
e que se chama: “Nunca mais!”.


Diversa coisa não dizia, ali pousada, a ave sombria,
com a alma inteira a se espelhar naquelas sílabas fatais.
Murmuro, então, vendo-a serena e sem mover uma só pena,
enquanto a mágoa me envenena: “Amigos... sempre vão-se embora.
Como a esperança, ao vir a aurora, ELE também há de ir-se embora”.
E disse o Corvo: “Nunca mais”.


Vara o silêncio, com tal nexo, essa resposta que, perplexo,
julgo: “É só isso o que ele diz; duas palavras sempre iguais.
Soube-as de um dono a quem tortura uma implacável desventura
e a quem, repleto de amargura, apenas resta um ritornelo
de seu cantor; do morto anelo, um epitáfio: o ritornelo
de ‘Nunca, nunca, nunca mais’ ”.


Como ainda ó Corvo me mudasse em um sorriso a triste face,
girei então numa poltrona, em frente ao busto, à ave, aos umbrais,
e, mergulhando no coxim, pus-me a inquirir (pois, para mim,
visava a algum secreto fim) que pretendia o antigo Corvo,
com que intenções, horrendo, torvo, esse ominoso e antigo Corvo
grasnava sempre: “Nunca mais”.


Sentindo da ave, incandescente, o olhar queimar-me fixamente,
eu me abismava, absorto e mudo, em deduções conjeturais.
Cismava, a fronte reclinada, a descansar, sobre a almofada
dessa poltrona aveludada em que a luz cai suavemente,
dessa poltrona em que ELA, ausente, à luz que cai suavemente,
já não repousa, ah! nunca mais...


O ar pareceu-me então mais denso e perfumado, qual se incenso
ali descesse a esparzir turibulários celestiais.
“Mísero!”, exclamo. “Enfim teu Deus te dá, mandando os anjos seus
esquecimentos, lá dos céus, para as saudades de Lenora.
Sorve o nepentes. Sorve-o, agora! Esquece, olvida essa Lenora!
E o Corvo disse: “Nunca mais”.


“Profeta!”, brado. “Ó ser do mal! Profeta sempre, ave infernal
que o Tentador lançou do abismo, ou que arrojaram temporais,
e algum naufrágio, a esta maldita e estéril terra, a esta precita
mansão de horror, que o horror habita – imploro, dize-mo, em verdade:
EXISTE um bálsamo em Galaad? Imploro! dize-mo, em verdade!”
E o Corvo disse: “Nunca mais”.


“Profeta!”, exclamo. “Ó ser do mal! Profeta sempre, ave infernal!
Pelo alto céu, por esse Deus que adoram todos os mortais,
Fala se esta alma sob o guante atroz da dor, no Éden distante,
Verá a deusa fulgurante a quem nos céus chamam Leonora.
- essa, mais bela do que a aurora, a quem nos céus chamam Leonora!”
E o Corvo disse: “Nunca mais”.


"Seja isso a nossa despedida!”, ergo-me e grito, alma incendiada.
“Volta de novo à tempestade, aos negros antros infernais!
Nem leve pluma de ti reste aqui, que tal mentira ateste!
Deixa-me só nesse ermo agreste! Alça teu voo dessa porta!
Retira a garra que me corta o peito e vai-te dessa porta!”
E o Corvo disse: “Nunca mais!”


E lá ficou! Hirto, sombrio, ainda hoje o vejo, horas a fio,
sobre o alvo busto de Minerva, inerte, sempre em meus umbrais.
No seu olhar medonho e enorme o anjo do mal, em sonhos, dorme,
e a luz da lâmpada, disforme, atira ao chão a sua sombra.
Nela, que ondula sobre a alfombra, está minha alma;
e, presa à sombra, não há de erguer-se, ai! nunca mais!



                           (by Edgar Allan Poe)
REFERÊNCIAS:
POE, Edgar Allan. Antologia de Contos. Trad. Brenno Silveira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1959.
POE, Edgar Allan. Poemas e Ensaios. Trad. de Oscar Mendes e Milton Amado. São Paulo: Editora Globo, 1999.


  

3 de mar. de 2024

JORGE LUIS BORGES – O credo de um poeta




PEDRO LUSO DE CARVALHO

JORGE LUIS BORGES nasceu a 24 de agosto de 1899, em Buenos Aires, Argentina. Foi fabulista, poeta, contista, ensaísta e mitólogo. Educado num lar bilíngue, aprendeu a escrever em inglês antes de sua língua pátria. Na casa em que morava com a família, o menino Jorge passava boa parte de seu tempo na ampla biblioteca de seu pai.
Já adulto Borges sofreu a influência de poetas espanhóis da vanguarda radical. Seu nome passou a ter visibilidade nos anos 1920, como poeta e ensaísta. As obras em prosa passaram a ser admiradas nos anos de 1930.
Do fim dos anos 1950 até a sua morte – 14 de junho de 1986, em Genebra, Suíça - Borges fez muitas palestras e voltou a escrever poemas, já que sua deficiência visual dificultava sua escrita em prosa.
Segue um trecho de O credo de um poeta, de Jorge Luis Borges (In Borges, Jorge Luis. Esse ofício do verso. 2ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 103):

O CREDO DE UM POETA (fragmento)
JORGE LUIS BORGES


Meu propósito era falar sobre o credo do poeta, mas, olhando para mim, descobri que tenho apenas um tipo claudicante de credo. Esse credo talvez possa ser útil para mim, mas dificilmente é para os outros.
Aliás, acho que todas as teorias poéticas são meras ferramentas para escrever um poema. Suponho que haja tantos credos, tantas religiões, quantos são os poetas. Embora no final eu diga sobre os meus gostos e desgostos no tocante à escrita da poesia, acho que vou começar com algumas memórias pessoais, não só de escritor, mas também de leitor.
Tenho para mim que sou essencialmente um leitor. Como sabem, eu me aventurei na escrita; mas acho que o que li é muito mais importante que o que escrevi. Pois a pessoa lê o que gosta – porém não escreve o que gostaria de escrever, e sim o que é capaz de escrever.

                   
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18 de nov. de 2023

ALUÍSIO DE AZEVEDO – Vida & Obra

Aluísio de Azevedo



 - Pedro Luso de Carvalho       

ALUÍSIO DE AZEVEDO (Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo) nasceu em São Luís do Maranhão, a 14 de abril de 1857, filho de uma mulher que havia abandonado o marido, um comerciante português, para viver com o vice-cônsul de Portugal. Dessa união (concubinato), teve cinco filhos.
Na casa de sua família havia uma atmosfera intelectual, que despertou em Aluísio o pendor para o desenho e a pintura.
Na mesma casa comercial onde trabalhou, em São Luís, estudou as primeiras letras. Deixou sua cidade natal para morar no Rio de Janeiro, onde seu irmão mais velho, Artur de Azevedo, comediógrafo e jornalista, fazia grande sucesso. Nessa época, estava com 17 anos de idade, passou a estudar pintura, na Escola de Belas Artes.
No Rio, onde passou a residir, Aluísio de Azevedo começou a trabalhar na imprensa como caricaturista. Trabalhou em O Fígaro, O Mequetrefe e em A Semana Ilustrada.
Aluísio retorna a São Luís, onde escreve, em 1881, O Mulato, o primeiro romance do escritor, que obteve grande êxito. Em O mulato, o escritor denuncia a corrupção do clero e o preconceito racial, o que foi motivo para grande irritação da burguesia maranhense.  
De volta ao Rio, publica diversas obras e colabora em jornais e revistas. Depois de algum tempo, presta concurso público para cônsul; aprovado, serve em Vigo, Nápoles, Tóquio, e depois em Buenos Aires, onde falece.
Aluísio de Azevedo é a figura principal do naturalismo no Brasil. Notável observador de costumes e ambientes da sociedade do Segundo Reinado tinha no folhetim de imprensa o meio de publicação de sua obra, o que prejudicava edições mais eficientes de sua abundante produção.
Deixou, porém, três ou quatro obras que lhe asseguraram importante lugar no romance brasileiro. Na obra de Aluísio de Azevedo há uma significação histórica em paralelo com a significação literária. Por todos os méritos, foi eleito para assumir uma cadeira na  Academia Brasileira de Letras.
Depois que Aluísio de Azevedo assumiu o cargo de cônsul, surpreendentemente, abandonou a literatura; os motivos, que o levaram a tomar essa decisão, nunca ficaram esclarecidos.
Aluísio de Azevedo servia em Buenos Aires, onde servia como cônsul, e vivia conjugalmente com uma senhora argentina e os dois filhos desta. O escritor morreu, na capital portenha, em 21 de janeiro de 1913, aos 57 anos de idade, incompletos.
Suas principais obras: Uma lágrima de mulher (1879), O mulato (1881), Casa de pensão (1884), O homem (1887), O coruja (1889), O cortiço (1890), O esqueleto (1890), Demônios (1893), Livro de uma sogra (1895).



REFERÊNCIAS:
LINS, Álvaro; HOLLANDA, Aurélio Buarque de. Antologia da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, vol. II, 1966.
GONZAGA, Sergius. Curso de Literatura Brasileira. Porto Alegre: Editora Leitura XXI, 2004.

    
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26 de out. de 2023

[Conto] LUIS FERNANDO VERISSIMO – Mal-entendido



                             - Pedro Luso de Carvalho
    
         Luis Fernando Veríssimo, um dos escritores brasileiros mais importantes, nasceu em Porto Alegre, em 1936. No ano de 1969 o jornal Zero Hora começa a publicar as suas crônicas. Nesse mesmo ano começou a trabalhar para a MPM Propaganda, como redator de publicidade. Mais tarde, suas crônicas são publicadas nos jornais O Estado de São Paulo Jornal do Brasil.
        
       Publicou algumas dezenas de livros, dentre eles mencionamos os que obtiveram maior sucesso, dentre os menos atuais: O Popular (J.Olympio, 1973), Ed Mort e Outras Histórias (L&PM, 1979), O Analista de Bagé (L&PM, 1980) A Velhinha de Taubaté (L&PM, 1983), Aventuras da Família Brasil (quadrinhos, L&PM, 1985), O Suicida e o Computador (L&PM, 1992), Comédias da Vida Privada (L&PM, 1994),  Américas (Artes e Ofícios, 1994).
        
        Segue o conto de Luis Fernando Veríssimo intitulado Mal-entendido (In Contos de Bolso. Alexandre Guardiola. Porto Alegre: Casa Verde, 2005, p.11):

                                                    [ESPAÇO DO CONTO]
                                                      
                                                      MAL-ENTENDIDO
                                                                L. F. Verissimo

        Escuta, eu sei que estou me arriscando vindo aqui, me disseram que você queria me matar, mas escuta. Foi um mal-entendido. Quando eu falei em cagalhão, eu não me referia a... Escuta! Deixa eu falar? Era no bom sentido, eu... Espera! Ó cara. Nós não fomos coroinhas juntos? Então você acha que eu ia dizer uma coisa dessas de você, só por causa de um... Escuta, pô. Eu seria a última pessoa no mundo a... Eu posso falar? Espera! Escuta! Não! Não!

                                                              
                                                               *  *  *  


20 de set. de 2023

AFRÂNIO COUTINHO - Evolução da Crítica


 – PEDRO LUSO DE CARVALHO
  
Evolução da Crítica Shakespeariana foi o título da palestra realizada por Afrânio Coutinho no curso realizado pela Academia Brasileira de Letras, em 1964, por ocasião da comemoração do quarto centenário de Shakespeare. O mestre inicia-a dizendo que a crítica literária não se constitui um gênero literário que possa ser análogo com o romance, o lirismo, o drama, a crônica, que nascem da imaginação, enquanto a crítica literária constitui-se em produto da razão, que exige reflexão, o que a aproxima da filosofia.
Na crítica, o espírito atua sobre a matéria literária, em todos os gêneros imaginativos. Sua tarefa é, pois, de natureza racional, de forma específica, em relação aos gêneros da literatura: romance, novela, conto, crônica e poesia; do que é criado pela imaginação, em literatura, passa no que diz respeito à crítica, a ser analisado, interpretado, compreendido e julgado. Então, tem-se que a matéria específica da crítica literária, no campo da racionalidade, é meditar e definir o fenômeno literário, tais como aparecem na obra de arte da linguagem, em qualquer um de seus gêneros acima mencionados.
A crítica, criada por Aristóteles, às vezes olhada com desprezo por muitos escritores da literatura, há muitos séculos vem servindo de conselheira do leitor, sem o qual não se justificaria a existência dessa forma de manifestação artística, vem caminhando sem esmorecer, desde sua criação até os dias atuais, em defesa da arte das palavras. E, na medida em que a literatura apresenta suas mutações ao longo dos anos, também a crítica faz a sua adequação às novas épocas, com seus períodos estilísticos, escolas e escritores.
Da longa palestra sobre crítica literária, proferida por Afrânio Coutinho, na Academia Brasileira de Letras, a respeito da análise do estilo e da técnica usada pela crítica, em razão da especificidade da obra e da envergadura de seu autor, referindo-se de modo especial à obra shakespeariana, transcrevo apenas alguns trechos que considerei mais importante, como segue:
No espaço de perto de quatrocentos anos que a sua obra ocupa as atenções do mundo, ela é um constante desafio à argúcia explicadora e valorativa da crítica literária. Nenhuma outra obra, pelo seu volume e qualidade, pois é o maior e mais perfeito acervo literário ainda produzido pelo espírito criador da humanidade, tem oferecido oportunidades mais amplas à penetração e compreensão do fenômeno literário.
E, de feito, a resposta que a crítica há dado a esse desafio tem sido memorável. Pode-se afirmar, também, que se é grande a obra shakespeariana, não é menos valiosa a contribuição que a crítica literária universal tem dado, a partir da observação, do estudo, da análise, da interpretação daquele extraordinário acervo de arte da palavra. Debruçada sobre ele há quase quatro séculos, a mente indagadora da crítica tem retirado, por outra parte, conclusões percucientes sobre o que seja a literatura, sobre como opera no espírito do público, sobre a sua natureza e função.
Não há seguramente, maior matéria prima literária para sobre ela fazer atuar o espírito crítico: drama ou lirismo, tragédia ou comédia, personagens ou enredos, estilo ou linguagem, metáforas ou símbolos, sublime ou natural, fantasia ou realidade, humanidade comum ou tipos heróicos, amor e morte, infância e velhice, guerra e paz, o instante e o eterno, a cidade e o campo, o passado e o presente, a obra shakespeariana é o espelho da humanidade, um resumo da história do homem, é o próprio homem em seus variados aspectos de grandeza e miséria, diante da vida e da morte, do perigo e da alegria, do infortúnio e do triunfo, do amor e da maldade, dos poderosos e dos humildes.
Daí em diante, Afrânio Coutinho ocupa-se em fazer um levantamento da manifestação da crítica sobre a obra de Shakespeare, de sua repercussão e aceitação pelos leitores, mencionando que, em 1942, o bibliográfico William Jaggard afirmava que com exceção das Escrituras, nenhum outro assunto ou escritor havia despertado mais comentário crítico do que Shakespeare, aduzindo, que o acervo crítico, em razão do volume de suas publicações, não foi arbitrário e nem somente quantitativo, incluindo todas as escolas críticas, todos os métodos, todas as teorias, no andar da literatura ocidental.
Afrânio dos Santos Coutinho nasceu a 15 de março de 1911, em Salvador, Bahia. Foi ensaísta, crítico literário e educador. Formado em Medicina em 1931, tomou outro caminho: foi professor de Filosofia, História e de Literatura. Escreveu 29 livros, que foram publicados entre os anos de 1935 a 1994, dentre eles, Correntes cruzadas, Introdução à literatura no Brasil, A literatura no Brasil (16 tomos), Machado de Assis na Literatura Brasileira, Crítica e Poética, A tradição afortunadahistória literária. Em 17 de abril de 1962, passou a ocupar a Cadeira nº 33 da Academia Brasileira de Letras. Faleceu em 5 de agosto de 2000, na cidade do Rio de Janeiro.


REFERÊNCIA
COUTINHO, Afrânio. Crítica e Poética. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1968.
KOOGAN LAROUSSE. Pequeno Dicionário Enciclopédico. Rio de Janeiro: 1979,  p.1.112.


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27 de ago. de 2023

ANTERO DE QUENTAL – Inovador de Ideias




 – Pedro Luso de Carvalho

ANTERO DE QUENTAL, que foi registrado no Cartório Civil como Antero  Tarquínio de Quental, nasceu a 18 de abril de 1842,  em Ponta Delgada, Ilha de São Miguel, Açores, onde passou sua infância. Era filho de Fernando de Quental e D. Ana Guilhermina da Maia, ele açoriano, ela natural de Setúbal.
Em São Miguel, fez seus primeiros estudos até ser matriculado no Colégio do Pórtico, dirigido por António Feliciano de Castilho, no Continente. Aprendeu desde tenra idade as línguas francesa e inglesa. Na intimidade que viveu com a família Castilho, recebeu as primeiras luzes de latim, em curso por este ministrado.
Estudou em Coimbra, onde se fez notar pelas atitudes revolucionárias e pelo arrojo inovador das ideias. Foi o provocador e líder da célebre “Questão Coimbrã”, a qual, mais que um combate a Castilho, representou um golpe contra o romantismo e a afirmação de um espírito novo: o da chamada Geração de 1865.
Vida agitada e dramática, sua figura humana ainda se distingue mais do que a figura intelectual. Teve ímpetos para a ação, e chegou a fundar sociedades revolucionárias (movimentos políticos filiados à doutrina socialista); esses ímpetos sucediam, porém, crises de solidão e pessimismo. Então, refugiava-se em Ponta Delgada, e por muito tempo ninguém tinha notícia de sua existência.
Estudou filosofia e problemas sociais, chegando a elaborar um sistema pessoal de ideias, do qual só publicou fragmentos. Essa tendência filosófica está refletida na sua poesia, das mais altas e originais da língua portuguesa. É de se lhe notar a predileção pelo soneto, forma que havia sido desdenhada pelos românticos.
Em data de 28 de setembro de 1858, matricula-se na Faculdade de Direito de Coimbra. Estava então, com dezessete anos. Eça de Queirós dirá, na sua evocação da mocidade de Antero de Quental:
Coimbra vivia então uma grande atividade, ou antes num grande tumulto mental. Pelos Caminhos de Ferro, que tinham aberto a Península, rompiam cada dia, descendo da França e da Alemanha (através da França) torrentes de coisas novas, ideias, sistemas, estéticas, formas, sentimentos, interesses humanitários... Cada manhã trazia a sua revelação, como um sol que fosse novo. Era Michelet que surgia, e Hegel, e Vico, e Proudhon; e Hugo tornado profeta e justiceiro dos reis; e Balzac com o seu mundo perverso e lânguido; e Goethe, vasto como o Universo; e Poe; e Heine, e creio que já Darwin, e quantos outros!
No período que compreende os anos de 1858 a 1860, época em que Antero termina o segundo ano da faculdade, publicou os seus primeiros versos no jornal O Acadêmico, que não passou de três números, Estreava nas colunas dos Prelúdios Literários em 1859, com o poema Quero-te muito, assinando apenas as iniciais de seu nome A. T. Q.
Na época de sua estreia, 1859, que não foi brilhante, a poesia portuguesa sofria o baque com a perda de nomes representativos do romantismo; cinco anos antes, morria Garret, Herculano faria uma nova edição suas Poesias em 1860 – fazia dez anos que não as reeditava. O ano de 1863 marca o início da prosa de Antero, quando começa a afastar-se do romantismo.
Concluiu o curso de Direito em julho de 1864. Nos últimos anos do curso, eram seus companheiros preferidos os cientistas: matemáticos e naturalistas. Mudara com determinação a forma de encarar a sua atividade literária. A fase sentimental de Antero de Quental – o poeta das Primaveras românticas – estava finda.
Antero de Quental chegara aos quarenta e nove anos, depois de ter trilhado um caminho com êxito no plano intelectual, mas sem ter tido tempo para realizar todos os seus sonhos dos vinte anos de idade, quer no campo do pensamento e da mentalidade, quer no território da política e da organização social.
A neurose que acometera  Antero foi responsável pelo seu abatimento físico e mental, que cerceou seus planos em várias áreas de sua atuação, quer como crítico e moralista, quer como filósofo e poeta.
 O poeta retorna de a S. Miguel para escolher uma família que pudesse cuidar de suas duas filhas adotivas, mediante uma mesada. Sua intenção, depois disso, era voltar com sua irmã para Lisboa, mas é na ilha que vive os seus últimos dias.
Depois de comprar um revolver numa loja de quinquilharias da parte baixa da cidade, o caixeiro a embrulha em três folhas de papel; como diz João Gaspar Simões, pretendia Antero dirigir-se ao Campo de São Francisco, mas antes resolveu passara pela casa onde deixara suas filhas adotivas.
O Campo de São Francisco está deserto. Antero de Quental senta-se num dos bancos, junto ao Convento da Esperança, desfaz o embrulho, retira o revólver e leva o cano à boca e detona a arma; muito ferido, puxa novamente o gatilho, e desta vez o tiro atinge-lhe o cérebro.
Isso ocorreu às oito horas da noite. O poeta teria ainda que suportar grande sofrimento, pois somente às nove horas, assistido por médicos chamados de emergência, numa cama da enfermaria do hospital da Misericórdia, dá o seu último suspiro. (Antero de Quental falece no dia 11 de novembro de 1891, em Ponta Delgada, Açores, aos 49 anos de idade.)
No Pequeno Dicionário Enciclopédico Koogan Larousse, sob a direção de Antônio Houaiss, o verbete sobre Antero de Quental está assim redigido:
Poeta e prosador português, Ponta Delgada, Açores (1842-1891), espírito angustiado pela dúvida metafísica e religiosa, e, ao mesmo tempo, homem de ação voltado para as ações revolucionárias da época, foi líder de sua geração literária e de movimentos políticos filiados à doutrina socialista. Atacado de grave neurastenia acabou por suicidar-se. O timbre filosófico de sua poesia, trabalhada com lavor, é reflexo de pungentes conflitos interiores, que lhe marcaram a vida. Antero forma com Camões e Bocage, a trindade dos grandes sonetistas portugueses, Obras principais: Odes modernas (1865), Sonetos (1890).
Obras principais de Antero de Quental: Sonetos de Antero, 1861; Odes modernas, 1865; Primaveras românticas, 1871; Os sonetos completos de Antero de Quental, 1886; Raios de extinta luz, 1892; Bom senso e bom gosto, 1865; A dignidade das Letras e as Literaturas Oficiais, 1865; Sonetos (1890), Prosas (3 vols.), 1923, 1926 e 1931.


REFERÊNCIAS:
SIMÕES, João Gaspar. Antero de Quental. Lisboa: Editora Presença, 1962.
LINS, Álvaro. HOLLANDA, Aurélio Buarque de. Roteiro Literário de Portugal e do Brasil. Vol. I. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1966.
LAROUSSE, Koogan. Pequeno Dicionário Enciclopédico Koogan Larousse. Direção de Antônio Houaiss. Rio de Janeiro: Editora Larrousse do Brasil, p. 1476.


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6 de ago. de 2023

JORGE LUIS BORGES – Esse ofício do verso




PEDRO LUSO DE CARVALHO


O livro de Jorge Luis Borges, Esse ofício do verso, organizado por Calin-Andrei Mihailescu e traduzido por José Marcos Macedo, foi lançado pela Companhia Das Letras, em 2007 (em 2ª reimpressão). Esse ofício do verso está dividido em 6 partes, quais sejam: 1) O enigma da poesia, 2) A metáfora, 3) O narrar uma história, 4) Música da palavra e tradução, 5) Pensamento e poesia, e 6) O credo de um poeta. No 1º capítulo dessa obra, O enigma da poesia, diz Borges [trecho]:
A verdade é que não tenho revelações a oferecer. Passei minha vida lendo, analisando, escrevendo (ou treinando minha mão na escrita) e desfrutando. “Sorvendo” a poesia, cheguei a uma derradeira conclusão sobre ela. De fato, toda vez que me deparo com uma página em branco, sinto que tenho que redescobrir a literatura para mim mesmo. Mas o passado não é de valia alguma para mim. Assim, como disse, tenho apenas minhas perplexidades a lhes oferecer. Estou perto dos setenta. Dediquei a maior parte de minha vida à literatura, e só posso lhes oferecer dúvidas”.
Sobre a Metáfora, 2º capítulo, escreve Borges [trecho do segundo capítulo]:
O poeta argentino Langones, lá pelos idos de 1909, escreveu pensar que os poetas estavam usando sempre as mesmas metáforas e que tentaria treinar a mão descobrindo novas metáforas para a lua. Disse também, no prefácio a um livro chamado 'Lunario sentimental', que cada palavra é uma metáfora morta. Essa declaração, claro, é uma metáfora. Mas acho que todos sentimos a diferença entre metáforas mortas e vivas. Se pegarmos qualquer bom dicionário etmológico (estou pensando em meu velho amigo ignorado, Dr. Skeat) e se procurarmos uma palavra qualquer, na certa encontraremos uma metáfora enfurnada em alguma parte”.
No capítulo 3º da obra, Esse ofício do verso, qual seja, O narrar uma história, escolhi os três trechos que seguem:
Ao consideramos o romance e a épica somos tentados a pensar que a diferença principal está na diferença entre verso e prosa, entre cantar algo e enunciar algo. Mas acho que há uma diferença maior. A diferença está no fato de que o importante na épica é o herói – o homem que é um modelo para todos os homens. Ao passo que a essência da maioria dos romances, como salientou Mencken, reside na aniquilação de um homem, na degeneração do caráter".
Prossegue Borges, em O narrar de uma história:
Isso nos leva a outra questão: O que pensamos da vitória e da derrota? Quando se fala hoje em dia num final feliz, as pessoas consideram-no um simples concessão ao público ou uma estratégia comercial; consideram-no artificial. Mas por séculos os homens puderam acreditar sinceramente na felicidade e na vitória, embora percebessem a dignidade intrínseca da derrota. Por exemplo, quando se escrevia sobre o Velocino de Ouro (uma das velhas histórias da humanidade), leitores e ouvintes sabiam desde o início que o tesouro seria encontrado no final”.
Ainda sobre o capítulo O narrar de uma história:
Bem, hoje em dia, se alguém empreende uma aventura, sabemos que terminará em fracasso. Quando lemos – penso num exemplo que admiro – The Aspern papers, sabemos que os papéis jamais serão encontrados. Quando lemos O Castelo de Franz Kafka, sabemos que o homem jamais ingressará no castelo. Ou seja, não podemos realmente acreditar em felicidade e sucesso. E isso talvez seja uma das pobrezas de nosso tempo. Suponho que Kafka tenha sentido algo bem parecido quando quis que seus livros fossem destruídos: queria na verdade escrever um livro feliz e triunfante, e sentiu que não podia fazê-lo. Ele poderia tê-lo feito, é claro, mas as pessoas teriam percebido que ele não estava dizendo a verdade. Não a verdade dos fatos, mas a verdade dos seus sonhos”.
Segue um trecho do 4º capítulo, Música da palavra e tradução, dessa obra de Borges:
Portanto, acho que a idéia de uma tradução literal proveio da tradução da Bíblia. Esse é apenas um palpite (imagino que haja aqui muitos especialistas que podem me corrigir se eu estiver errado), mas acho ser altamente provável. Quando as traduções bastante idôneas da Bíblia foram empreendidas, começou-se a sentir que havia uma beleza nos modos alheios de expressão. Agora todos têm muito gosto por traduções literais, porque uma tradução literal sempre nos dá aquelas pequenas sacudidelas de surpresa pelas quais esperamos. De fato, pode-se dizer que não se precisa de original algum. Dia virá, talvez, em que a tradução será considerada como algo em si mesmo. Podemos pensar nos Sonnets from the Portuguese de Elizabeth Barrett Browning”.
Vejamos um trecho do que Borges escreve no 5º capítulo do livro Esse ofício do verso, intitulado Pensamento e poesia:
Há versos, é claro, que são belos e sem sentido. Porém ainda assim têm um sentido – não para a razão, mas para a imaginação. Permitam-me tomar um exemplo bem simples: two red roses across the moon (Duas rosa vermelhas atravessadas na lua). Aqui talvez se diga que o significado é a imagem conferida pelas palavras; mas para mim, pelo menos, não há imagem definida. Há um prazer nas palavras e, claro, na cadência das palavras, na música das palavras. E tomemos outro exemplo de William Moris: Therefore, said fair Yoland of the flowers (fair Yoland é um bruxa), This in the tune of Seven Towers ['Portanto', disse a bela Yoland das flores, 'esta é a música das Sete Torres']. Estes versos foram destacados do contexto, e ainda assim acho que subsistem”.
.Em trecho do 6º capítulo do livro Esse ofício do verso, qual seja, O credo de um poeta, assim se expressa Borges:
Meu propósito era falar sobre o credo do poeta, mas, olhando para mim, descobri que tenho apenas um tipo claudicante de credo. Esse credo talvez possa ser útil para mim, mas dificilmente é para os outros. Aliás, acho que todas as teorias práticas são meras ferramentas para escrever um poema. Suponho que haja tantos credos, tantas religiões, quantos são os poetas. Embora no final eu diga algo sobre os meus gostos e desgostos no tocante à escrita da poesia, acho que vou começar com algumas memórias pessoais, não só de escritor, mas também de leitor. Tenho para mim que sou essencialmente um leitor. Como sabem, eu me aventurei na escrita; mas acho que o que li é muito mais importante que o que escrevi. Pois a pessoa lê o que gosta – porém não escreve o que gostaria de escrever, mas sim o que é capaz de escrever”.


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